“Uma nova âncora fiscal”, por José Serra
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Quem vencer as eleições presidenciais de 2022 no Brasil terá de enfrentar o grande desafio de promover a recuperação econômica do PaÃs num contexto de responsabilidade fiscal. Como é óbvio, isso só será viável se o governo federal adotar uma estratégia de ação pragmática e minimamente compatÃvel com a que vem sendo praticada nos paÃses economicamente bem-sucedidos.
Governos no mundo inteiro estão aumentando os gastos públicos para lidar com os efeitos adversos causados pela pandemia num contexto de crise econômica, polÃtica e social. No Brasil, ademais, as cicatrizes provocadas pela pandemia da covid-19 serão mais extensas em decorrência do elevado desemprego, do aumento da desigualdade social e da pobreza e dos riscos associados à sustentabilidade da dÃvida pública.
O cenário torna-se ainda mais desafiador com o aumento da inflação global, que reflete a escassez de oferta de produtos e serviços provocada pela pandemia. Resultado: a evolução dos preços das commodities chega a assustar, com o aumento da cotação média do petróleo de US$ 56,3, em 2020, para US$ 65,7, em 2021. E, o que é pior, o preço dos alimentos disparou para o nÃvel mais alto desde 2014.
O novo governo terá de fazer planejamento orçamentário para valer, como condição para enfrentar as sequelas da pandemia – já presentes – envolvendo programas nas áreas da saúde, da educação e das redes de segurança social. Deve-se ter claro, também, que o espaço fiscal para financiar polÃticas públicas se reduz quando o Banco Central aumenta a taxa de juros para conter as expectativas inflacionárias. Nesse contexto, a responsabilidade fiscal torna-se um fator-chave para viabilizar uma agenda de polÃticas públicas mais abrangentes.
Sem uma âncora fiscal adequada, as propostas viram promessas vazias, os riscos fiscais são maiores e os juros se tornam mais elevados, na medida em que o descontrole das contas públicas se torna mais evidente para os agentes econômicos.
Pode-se argumentar que a adoção do teto de gastos visava precisamente a conter o descontrole herdado do governo Dilma Rousseff, servindo como âncora fiscal da polÃtica econômica. Mas não foi bem assim, em face das diversas mudanças desde sua criação.
No contexto atual, a chamada PEC dos Precatórios, na verdade, representa o fim do teto como mecanismo de controle dos gastos públicos. Seu objetivo declarado passou a ser uma ampliação do espaço fiscal para gastos correntes permanentes, mediante a geração de dÃvidas com tÃtulos precatórios que passariam a ser removidas das estatÃsticas. Com isso, o teto passará a promover descontroles fiscais, em vez de contê-los.
A evolução da dÃvida pública é o principal indicador de solvência de um paÃs e é indispensável que as expectativas do mercado em relação à s contas fiscais estejam ancoradas em regras que permitam seu monitoramento. Mas mecanismos de controle da despesa, como o teto de gastos, devem ser considerados instrumentos de operacionalização da gestão fiscal. Neste caso, a âncora da responsabilidade fiscal deve estar associada diretamente ao endividamento público, que pode ser influenciado não somente pela despesa, mas também pela receita. Num paÃs com sistema tributário injusto, como o Brasil, essa abordagem faz toda a diferença.
Alega-se que o teto de gastos viabilizaria reformas tributárias e administrativas destinadas a promover justiça tributária e conter supersalários em órgãos fora da esfera do Executivo. No entanto, medidas para promover progressividade no regime tributário e eliminar privilégios no setor público não abrem espaço fiscal no teto de gastos para uma agenda social minimamente adequada.
Cada Poder da República tem o seu próprio teto, portanto, economias em órgãos fora do Executivo, nos quais se concentram os privilégios mais caros do Estado, não geram recursos no orçamento do Poder Executivo. Além disso, a cobrança de impostos dos setores mais ricos também não gera espaço fiscal no teto. Se a âncora fiscal fosse uma regra de controle do endividamento público, essas reformas – tributárias e administrativas – passariam a ter impacto relevante sobre o financiamento do gasto social.
Na Europa, a Comunidade Europeia iniciou, recentemente, a discussão sobre quais serão os novos instrumentos de controle dos orçamentos. E o Reino Unido deu um passo importante ao divulgar seu novo arranjo institucional na área fiscal: a responsabilidade do novo pacote de aumento de gastos será garantida por uma regra de controle do endividamento.
O Congresso Nacional precisa levar em consideração essas mudanças que estão acontecendo no mundo na área fiscal. Será preciso discutir um novo modelo de governança para a gestão dos recursos públicos de modo a viabilizar propostas econômicas que sejam capazes de gerar desenvolvimento com maior inclusão social.
Nesta agenda, é preciso que sejamos mais pragmáticos e menos ideológicos, deixando narrativas pouco férteis de lado. No papel de âncora fiscal, o teto de gastos deve ser substituÃdo por uma regra fiscal que tenha como objetivo sinalizar a trajetória da dÃvida pública.
(*) Senador pelo PSDB-SP
Artigo publicado no Estadão, em 11/11/2021