O diabo mora no detalhe
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O provérbio alemão nos ensina que grandes ideias, projetos e intenções muitas vezes tropeçam não em sua concepção, mas no detalhe. A pandemia do coronavÃrus escancarou que determinados desafios só podem ser enfrentados com a ação eficiente e ágil do Estado e não pela sociedade e pelo mercado. Nada que autorize a leitura que precisamos de um Estado inchado, obeso, perdulário, mas de ações governamentais qualificadas e bem pensadas. No Brasil, as ações filantrópicas das pessoas e das empresas cresceram exponencialmente durante a presente crise, mas só o aparato estatal tem escala e abrangência em sua ação para responder um desafio de tamanha envergadura.
Em meus 36 anos de vida pública, sempre oscilei entre a luta polÃtica, o desafio gerencial e o pensamento teórico. E, hoje, nestas linhas, vou pisar mais na perna gerencial, já que por 18 anos ocupei cargos executivos. Observando o desempenho das polÃticas públicas de enfretamento da crise sanitária e econômica em curso, percebo lacunas históricas que impedem que ação governamental cumpra plenamente seus objetivos e chegue efetivamente à população alvo. Gostaria aqui de discutir três gargalos a serem superados: a identificação única digital dos cidadãos brasileiros, os problemas de acesso ao mundo digital e à Internet e a auto-organização da comunidade para dar suporte à s ações do poder público.
Diante do isolamento social necessário para evitar a propagação do vÃrus, a economia foi em grande parte paralisada, sacrificando, sobretudo, desempregados e trabalhadores informais, a chamada população invisÃvel. Diante disso, o Governo e o Congresso conceberam o auxÃlio emergencial mensal de 600 reais por três meses para assegurar uma renda mÃnima a quem não participa de nenhum dos programas de transferência de renda como o Bolsa FamÃlia e o BenefÃcio de Prestação Continuada, que se direcionada a idosos pobres e pessoas com deficiência. O objetivo era beneficiar de 60 a 80 milhões de brasileiros sem vÃnculo formal de trabalho. As dificuldades logo apareceram. Desde a dificuldade da população pobre em se cadastrar, as negativas para pessoas que deveriam se enquadrar, a inexistência de um cadastro amplo e seguro, e o gargalo para o pagamento com a formação de filas imensas nas portas das agências da Caixa Econômica, provocando aglomerações e expondo a população ao contágio.
Um dos milhares de casos cruéis e injustos quando ganham carne, osso, nomes e rostos, retratados pela imprensa, um me chamou atenção, foi a de seis famÃlias da favela Córrego do Eucalipto, na periferia de Recife, que compartilham o mesmo endereço em casas diferentes, o número 15 da Rua do Platô. Como o programa de ajuda emergencial prevê que apenas dois CPFs de cada endereço podem acessar o benefÃcio, apenas uma das seis famÃlias conseguiu êxito. E aà que a intenção tropeça no detalhe.
No Brasil, cada um de nós tem uma parafernália de números que nos identificam. A Carteira de Identidade, o CPF, o TÃtulo de Eleitor, a Carteira de Motorista, o Certificado de Reservista, a Carteira de Trabalho, as Carteiras Profissionais emitidas por organizações profissionais, o Cartão SUS, o Cadastro do Bolsa FamÃlia, e por aà vai. São centenas de informações acopladas a cada um dessas identificações, em portentosas bases de dados, na maior parte, ilhadas em seus objetivos e sem compartilhamento recÃproco e canais de comunicação, dificultando enormemente a implantação de polÃticas públicas de alcance geral e nacional.
Urge criar a Identificação Única Digital para todos os brasileiros. É possÃvel? Claro que sim. A Ãndia com seus 1,3 bilhões de habitantes conseguiu. Vale a pena ler o diálogo entre o apresentador de TV, Luciano Huck, com o bilionário indiano, filantropo, fundador da gigante de tecnologia INFOSYS, Nadan Nilekani, que aceitou ir para o governo e presidir a Autoridade Única de Identificação da Ãndia. Em dez anos, o paÃs logrou êxito, dando a cada um de seus habitantes sua Identidade Única Digital vinculada a uma conta bancária, que ao promover uma verdadeira revolução digital possibilitou o maior programa de transferência do mundo. O caderno especial com este diálogo se encontra no jornal O ESTADO de SÃO PAULO, do domingo, 17 de maio último. Na crise desencadeada pelo coronavÃrus, a Ãndia decretou lockdown e em duas semanas conseguiu depositar na conta de cada cidadão vulnerável o auxÃlio emergencial.
O sistema criado é simples, minimalista e leve. No cadastro constam nome, endereço, data de nascimento, sexo e a biometria. Opcionalmente o email e o número do celular. Um sofisticado sistema de rastreamento, através da biometria, evitou a duplicação e as fraudes. Os demais sistemas setoriais foram se acoplando, sem prejuÃzo de seus objetivos especÃficos, e criando uma ferramenta essencial para que a relação Estado/Cidadão ganhe eficiência e agilidade. Pergunto: qual é a dificuldade de usar o mesmo número de identificação com biometria na hora de votar, alimentar o prontuário eletrônico do SUS ou declarar o Imposto de Renda na Receita Federal? Nenhuma. A partir dele é possÃvel acessar informações complementares setoriais para cada uso concreto e cruzar dados dos diversos sistemas.
O segundo detalhe importante que se coloca no caminho de uma cidadania plena e de bons resultados para as ações governamentais é a digitalização do Brasil e de sua população. Matéria da FOLHA DE SÃO PAULO, do mesmo domingo, 17 de maio, trouxe dados desafiadores e essenciais. Revelou que 23% da população brasileira, ou seja, 42 milhões de brasileiros, jamais acessaram a Internet. O dado piora quando se trata das classes D e E. A exclusão digital chega nesta faixa da população a 41%. Trinta e três por cento dos domicÃlios brasileiros não possuem internet. Mas não é só uma questão quantitativa, é também de qualidade. Setenta milhões de brasileiros têm acesso precário, com conexão de baixa qualidade. Mil e quinhentos municÃpios brasileiros não têm fibra ótica para viabilizar conexão em banda larga.
Esta é mais uma faceta que revela a monstruosa e desafiadora desigualdade social no Brasil. Como facilitar o acesso do cidadão aos programas públicos, como se revelou nas dificuldades de se conseguir o auxÃlio emergencial, sem a população ter conectividade? Mas não só isso. Como praticar o ensino a distância com este cenário de exclusão digital, ou a telemedicina no SUS, ou bibliotecas virtuais, ou serviços financeiros, ou o acesso à cultura e ao entretenimento, ou ao e-comerce popular, ou à informação jornalÃstica? O detalhe tecnológico excluà parcelas enormes da sociedade dos benefÃcios do mundo digital contemporâneo. E temos dinheiro para isso. Mensalmente, nas nossas contas telefônicas, é cobrado um percentual para o FUST (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicação), criado na privatização do Sistema Telebrás em 1997. São mais de um bilhão de reais a cada ano previstos para combater a exclusão social nas telecomunicações. Em 2001, quando era Chefe de Gabinete do Ministério das Comunicações, na gestão do Ministro Pimenta da Veiga, chegamos a lançar o Teleducação e o Telessaúde. Mas detalhes, sempre eles, jurÃdicos e institucionais, impediram que até hoje os programas tivessem saÃdo do papel.
O último tema que queria explorar é o da auto-organização da sociedade para dar suporte a ações públicas. Existem tradicionalmente as Associações de Bairros e Comunitárias. O grau de efetividade e capacidade de mobilização é muito heterogêneo. Algumas são meramente cartoriais, outras aparelhadas politicamente, outras muito ativas e representativas. O governo pode muito, mas não pode tudo. A parceria com a comunidade pode dar outra dimensão à s polÃticas públicas. Isto me ocorreu, em janeiro deste ano, quando Minas Gerais e Belo Horizonte foram alvos de um verdadeiro dilúvio. Pensei: porque não organizar comitês populares de defesa civil? Muitas vezes, famÃlias expostas ao perigo em áreas de risco são refratárias à abordagem do poder público, mas talvez se sensibilizassem mais se a ação partisse de seus vizinhos.
Chamou-me a atenção agora na pandemia da COVID-19, a ação da Associação Comunitária de Paraisópolis, que mobilizou 420 presidentes de rua voluntários, que monitoram as 21 mil residências, sendo que cada presidente cuida de 50 casas. Todos foram treinados, no inÃcio presencialmente, depois do distanciamento social, on line. Cada presidente de rua tem quatro tarefas: conscientizar e monitorar os moradores para que fiquem em casa, distribuir doações, chamar socorro, se necessário, e levar boas notÃcias e combater as fake news. Com apoio de uma empresa privada contrataram duas ambulâncias, uma UTI móvel, dois médicos, três enfermeiras e dois socorristas, para atender a comunidade 24 horas.
Como se vê não são apenas os grandes planos e ações que produzem resultados. Que tal remover esses “detalhes” que impedem a construção de um Brasil melhor?
(*) Economista, foi deputado federal pelo PSDB-MG