“Falsas dicotomias”, por José Serra
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Poucos temas produzem tantas oposições falsas quanto a questão ambiental, contrapondo as necessidades econômicas à preservação de ecossistemas. Desde os anos 1970 modelos econômicos de pesquisa vêm incorporando variáveis ambientais, no pressuposto de que o desempenho das economias, no curto e longo prazos, depende do manejo de seus recursos naturais. O Brasil precisa deixar de amadorismos e ativismos ruidosos nessa área e adotar com seriedade uma agenda que nos alavanque como potência em matéria ambiental.
Trabalho recente publicado por cientistas da UFMG comprovou hipóteses de que o desmatamento na Amazônia afeta o volume de chuvas na região desmatada, comprometendo a produtividade do seu setor agrícola e o bem-estar nas cidades. A pesquisa aponta que, no trato de sistemas altamente complexos como o ambiental, medidas isoladas ou mal concebidas podem ter consequências dramáticas. Nas últimas décadas, eventos extremos associados a variações climáticas impuseram perdas vultosas a muitas comunidades.
Não por acaso, crescem mundialmente os esforços de coordenação com o objetivo de fazer frente aos riscos ambientais. Com respeito ao aquecimento global, a assinatura do Protocolo de Kyoto (1997) foi seguida pelo Acordo de Paris (2015), um ousado compromisso internacional abrangendo intenções e metas de redução de emissões de gases relacionados ao efeito estufa. Quando ministro das Relações Exteriores (2016-2017), adotei como prioridade a adesão do Brasil ao Acordo de Paris, convicto de que, além de sua relevância intrínseca, a agenda climática envolveria relações diplomáticas, políticas públicas e decisões de investimento.
Venho observando a importância de dois instrumentos que ajudam países a lidar com desafios ambientais: os mercados de poluentes – emission trading systems (ETSs) – e os títulos verdes soberanos – sovereign green bonds (SGBs). Esse é o rumo que o Brasil deveria seguir.
Os mercados de poluentes operam com precificação baseada em limites de emissões poluidoras do meio ambiente atribuídos a um ou mais setores da economia. Tais limites criam oferta e demanda de cotas negociáveis num mercado organizado, cuja principal vantagem é incentivar a redução de carbono ao menor custo possível. A livre negociação de cotas entre os participantes desse mercado – empresas que poluem compram cotas de carbono das que respeitam os limites predefinidos – promove atividades que geram benefícios econômicos, como a inovação tecnológica orientada por parâmetros ecológicos. Ou seja, manter as florestas em pé pode ter valor econômico superior à sua derrubada.
Os títulos verdes soberanos, por sua vez, são instrumentos financeiros emitidos por governos, nacionais ou subnacionais, cuja captação de dinheiro está vinculada, por acordo, a projetos ou atividades com benefícios ambientais, tais como mitigação de mudanças climáticas, preservação ou recuperação de biomas e eficiência energética, entre outros propósitos. Mais recentemente, iniciativas envolvendo múltiplos atores vêm preconizando uma nova modalidade de papéis, denominados títulos de performance ambiental. Neles, os fluxos de pagamento são determinados por metas ambientais previamente pactuadas com o emissor na estruturação do título de dívida. É importante destacar que muitos investidores institucionais têm mandato para alocar recursos em ativos associados à preservação ambiental.
Títulos verdes e mercados de poluentes têm enorme potencial no País, considerando os ativos naturais brasileiros. Precisamos trabalhar para torná-los viáveis.
Para desenvolver um mercado de poluentes no Brasil o Executivo federal e o Congresso Nacional devem dar prioridade a essa agenda, estabelecendo decisões governamentais nas várias etapas de sua implementação. É um tema complexo. Que setores e poluentes estarão envolvidos? Que entidades participam? Quais limites serão fixados e como? Que tipos de limite serão usados? Que mecanismos de compensação serão empregados? Como funcionarão os sistemas de monitoramento, divulgação e controle?
Com relação aos títulos verdes, a experiência internacional nos ensina que em muitos casos o uso do instrumento foi inserido no âmbito de uma estratégia ambiental ampla, orientada por metas de mitigação de variações climáticas, incluindo as do Acordo de Paris, e outros objetivos de sustentabilidade. Comitês intersetoriais, envolvendo diferentes atores, participam de várias etapas do processo: desde a decisão de lançar os títulos, passando pela montagem do portfólio de projetos ou gastos vinculados à preservação ambiental, até a elaboração dos arcabouços com os parâmetros da emissão.
Embora o caminho possa ser acidentado, Congresso e governo precisam entender que a exigência de critérios ambientais nas mais variadas políticas públicas é inevitável e cedo será questão de sobrevivência. Será parte da reputação de uma sociedade na esfera internacional. O Brasil detém um grande patrimônio natural e a preservação ambiental não é um empecilho ao crescimento, mas pode propulsioná-lo em diferentes horizontes.
(*) Senador pelo PSDB-SP
Artigo publicado em O Estado de S. Paulo, em 27/05/2021