Assim não dá
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Já recordei em outras oportunidades o que ouvi de Bill Clinton em Camp David. Quando visito um paÃs, disse ele, pergunto e procuro responder: qual seu maior temor e seu maior sonho? Palavras simples e profundas. No âmago do sentimento de cada povo sempre há algo em torno dessas questões. Aplicando ao Brasil, penso que no inconsciente nacional o que mais tememos é não “dar certo” e o que mais desejamos é crescer, ter desenvolvimento. Estes sentimentos raramente são conscientes. Traduzem-se de forma concreta, por exemplo, em “quero ter emprego”, quero que “os meus” tenham percursos prósperos; ou, pelo contrário: o paÃs não vai para frente por que “os polÃticos” roubam muito, “os governos” não ajudam. Ou ainda, na ver são mais antiga, não avançamos porque “eles” não deixam (o imperialismo, os estrangeiros ou quem seja). Até agora, porém, não perdemos a esperança de “dar certo”. Depois de 1988, com a nova Constituição, passamos a entender que desenvolvimento requer democracia e inclusão social.
Talvez estejamos começando a viver outro momento. O da desesperança. As pessoas deixam, aos poucos, de acreditar nelas próprias como coletividade. A “culpa” não é de ninguém, é de todos. Nem culpa é, trata-se de desalento. Também, dirão os mais ácidos, “com esta classe polÃtica…” e imaginam que o paÃs seria melhor sem os polÃticos. Com quem, então: com tecnocratas, com autoritários? Os que assim pensam, sem dar continuidade a seus temores, nos deixam com eles. Para contrastar, li recentemente um texto sobre a China. Chama-se: “O sonho chinês ou como evitar a dupla armadilha”, de Osvaldo Rosales. Desde o governo de Deng Xiao Ping, os chineses têm metas aceitas pela maioria (ou inculcadas nela), o governo dispõe de estratégias para orientá-las e de táticas para pô-las em prática. Dispensa, contudo, a democracia que conhecemos e queremos.
Será que não é possÃvel para os brasileiros voltarmos a ter esperança? Nos momentos de incerteza é quando mais se precisa de crença. Falta chacoalhar o paÃs outra vez, como fez Juscelino em seu tempo e mesmo o Plano Real, e vislumbrar um futuro mais venturoso. É melhor sonhar com os pés no chão, logo, é preciso dar os primeiros passos. Como imaginar um futuro melhor se as taxas de desemprego não se reduzem? Como reduzi-las sem investimento e como investir sem acreditar no futuro? Parece a quadratura do cÃrculo, mas não é.
A reforma da Previdência vem neste contexto: é preciso demonstrar que o Estado faliu e, sem concentrar todos os males na Previdência e muito menos nos pobres ou só no funcionalismo, falar francamente com a nação, e não só com o mercado. É necessário aprovar a reforma da Previdência não só para obter o “equilÃbrio fiscal”, mas para progredirmos. Ela é necessária por que o Estado, num paÃs de desigualdades e pobreza como o nosso, precisa atuar em todos os setores da sociedade e não dispõe mais de recursos. A reforma da Previdência, além de ser fiscalmente essencial, é necessária para dar ao Estado condições de ampliar os recursos para a Educação, a Saúde etc. E também para assegurar o pagamento futuro de pensões. Precisamos de um Estado hÃgido, o que não quer dizer pequeno, e precisamos de mais investimentos, que terão de vir principalmente do setor privado. Sem crescimento da economia, por mais que se reduzam os gastos, faltará pão à s pessoas e combustÃvel para o governo andar.
Não basta a reforma da Previdência. Para o paÃs ter rumo é preciso ver os que mandam empenhados no bem-estar coletivo. Os problemas, por sua multiplicidade, parecem intransponÃveis; sua solução, por isso mesmo, não pode ser unitária. É preciso que o povo veja sinais de avanço em várias áreas. Isso requer o uso do “verbo” – da palavra – não para alvejar inimigos, mas para despertar entusiasmo (que etimologicamente quer dizer “Deus no coração”, crença).
Que contraste entre o necessário para o paÃs voltar a sonhar e o bate-boca diário, via redes sociais, mantido pelos familiares da República! Não roubar é obrigação e é pouco; é preciso ter compostura e pensar grande. O desânimo só cederá se houver recuperação da confiança. Caso contrário, na prática, as esperanças no governo se desvanecerão como as pesquisas de opinião estão mostrando. Sei, por experiência, que governar é difÃcil. Não convém, pois, precipitação no julgamento.
Como ainda estamos em crise (basta olhar o desemprego), é preciso haver sinais positivos para que a crença se mantenha. É hora de apresentar e explicar ao paÃs uma agenda para vencer os desafios do crescimento econômico, da redução da pobreza e da injustiça social. Uma agenda que convoque a nação sem sectarismo para a reconstrução do caminho difÃcil, mas possÃvel, de desenvolvimento. PolÃticas que sejam de Estado e não deste ou daquele governo. No mundo contemporâneo, o governo precisa explicar os porquês de sua agenda para alavancar o desenvolvimento. Este requer a conjugação entre polÃticas governamentais (inclusive as distributivas e demais pertinentes na área social), um grande esforço na área de ciência e pesquisa para aumentar a produtividade, e requer ainda a cooperação da “iniciativa privada”, nacional e estrangeira, sobretudo na área de infraestrutura. O Estado, por si, será incapaz de tal proeza. Pior, poderá embaraçar a gestão sem conseguir o aumento da produtividade na economia e nas ações públicas.
Sem elas, como generalizar a crença no paÃs e fazer o povo sentir bem-estar? Falta explicar o porquê das reformas, no plural, e estabelecer uma ligação clara entre a agenda do governo com os interesses nacionais e populares de longo prazo. Só as sim voltaremos a crer em nós. Sem isso, assistiremos a uma indefinida transição entre a estagnação que herdamos do lulopetismo e não se sabe o quê. Assim não dá. Como imaginar um futuro melhor se as taxas de desemprego não se reduzem? Como reduzi-las sem investimento?
Publicado no jornal O Globo, em 5 de maio de 2019