“A hora se aproxima”, por Fernando Henrique Cardoso
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Daà que eu veja com apreensão o momento atual. O PaÃs sofre uma crise sanitária gravÃssima (talvez só comparável ao que aconteceu na “gripe espanhola†em 1918-1919); ainda está com as dificuldades econômicas, devidas não apenas à recessão, mas também à utilização de tecnologias poupadoras de mão de obra, as quais, sem que haja dinamismo na produção, mostram com clareza as dificuldades para a obtenção de empregos. E, ainda por cima, temos um governo que não oferece o que mais precisamos: serenidade e segurança no rumo que estamos seguindo.
Nem tudo se deve à condução polÃtica do presidente da República. Convém repetir: ele foi eleito pela maioria e disse o que faria… Fez. E não deu certo. Em razão disso, para onde vai o PaÃs?
Primeiro, não julgo que seja suficiente distribuir “culpasâ€. Há várias culpas e vários culpados, interna e externamente. Sejamos realistas: ainda que o presidente fosse capaz de conter os seus Ãmpetos, não nos livrarÃamos do vÃrus que nos atormenta. Mas poderia haver menos mortos. A credibilidade dos que mandam é quase tão eficaz para conter desatinos como a competência dos serviços de saúde para evitar mortes.
A semana que passou dava a sensação (a meu ver, falsa) de que corrÃamos o risco da volta ao autoritarismo. O sÃmile com situações autoritárias do passado não ajuda a entender as opções disponÃveis. Houve, sim, uma forte movimentação de comandos militares. Mas, para dizer em termos simples, trocamos seis por meia dúzia.
Cada chefe militar tem, é natural, suas caracterÃsticas e suas manias. Nenhum dos atuais comandantes, antigos ou novos nos postos, imagina que “um golpe†resolva a situação. Não sei o que se passa na cabeça presidencial, mas, ainda que desejasse um “golpeâ€, com que roupa? Basta ler as declarações dos militares que partiram ou dos que chegaram: quase todos falam em respeitar a Constituição e agir dentro da lei.
Não me parece haver clima, no PaÃs e na parte do mundo a que estamos mais vinculados, para aventuras. Dado o porte de nossa economia e a quantidade de questões sociais e econômicas a serem enfrentadas, por que uma pessoa razoável aumentaria as nossas angústias? E as que não são razoáveis? Estas precisam dispor de um clima favorável a suas loucuras, o que não me parece ser o caso.
Sendo assim, aumenta a responsabilidade de cada um dos cidadãos: devemos dizer, com firmeza, sim ao que queremos e não ao que nos assusta. Não é hora de calar, nem de fazer algazarra. Aproveitemos o quanto possÃvel para, com equilÃbrio, mostrar a insensatez de concentrar poderes nas mãos de quem quer que seja, pessoa ou instituição.
Defendamos a Constituição da República, que é democrática, e saudemos os polÃticos que creem que é melhor apoiar quem possa chegar à Presidência sem representar um extremo. Apresentemos aos brasileiros, quanto antes, um programa de ação realista, que permita juntar ao redor dele os partidos e as pessoas para formar um centro que seja progressista, social e economicamente. Centro que não pode ser anódino: terá lado, o da maioria, o dos pobres; mas não só, também o dos que têm visão de Brasil e os que são aptos para produzir.
Quem personificará esse centro? É cedo para saber. É cedo para “fulanizarâ€, como diria Ulysses Guimarães. Mas é hora de promover a junção das forças capazes de se contrapor a eventuais estrebuchamentos autoritários, antes que surjam propostas que nos levem a eles.
Vejo que alguns polÃticos se dispõem a agir para evitar que a mesmice predomine. Pelo menos é o que deduzo das declarações recentes de vários lÃderes da vida brasileira. A eles juntarei minha voz. Sei das minhas limitações e não tenho a ilusão de que, ao escrever que a eles me juntarei, a situação mudará. Mas se cada um dos brasileiros se dispuser a falar e a agir, é de esperar um futuro melhor.
Na polÃtica, como na vida, ou se acredita que é possÃvel mudar e obter uma algo melhor, ou se morre por antecipação. Continuemos, pois, vivendo: propondo mudanças, sempre com a expectativa de que elas possam ser realizadas e com elas o Brasil ficará melhor.
(*) Sociólogo, foi presidente da República
Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, em 04/04/2021